A vida traduz-se em letras

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Um Suicida

EXPO (Lisboa), 7 de Novembro de 2009



Hoje apetece-me ser alguém. Gostava de poder ser Humana, para variar, abandonar o meu corpo e viver por um dia...só gostava de poder

(abrir e fechar as mãos)

sentir o vento,

(correr e saltar),

sentir a chuva a escorrer na minha cara,

(gritar, falar, fazer sons),

sentir que a minha vida nunca terminará.

Infelizmente, não me concederam esse dom: sou uma gaivota, e para nada vivo. Gostava de ser como aquele rapaz ali, que está vestido de preto (não sei porquê), e que se mistura no meio da multidão. Traz um livro na mão (branco, que contrasta bem com o seu cabelo curto e escuro), curioso, vou segui-lo. Pode ser que ele me leve a algum lado

(é sempre bom ir a algum lado).

Saltito por entre a multidão, mas a multidão cobre-me: afinal, quem sou eu para além de uma gaivota?

Abro as asas e encontro-me no ar. Perscruto a multidão na esperança de o voltar a encontrar, e eis que o vejo, num dos bancos de pedra, sentado, a ler. Desço.

Saltito novamente ao encontro dele. Ele enxota-me

(no quotidiano, ninguém quer a companhia de uma gaivota)

com a mão direita, coberta por uma luva branca apenas.

Curiosa figura, esta: todo vestido de preto à excepção do livro e da luva branca que usa apenas na mão direita. Lá terá os seus motivos, e eu não me importava de os conhecer. Posso ser só uma gaivota, mas sou curiosa.

Leio a capa do livro

(sim, sou um gaivota que sabe ler):

"Les Fleurs du Mal", de Charles Baudelaire.

Saltito

(mais uma vez)

pelas costas do rapaz, e olho para o que ele lê. O livro está aberto no capítulo "La Mort", e ele lê um poema chamado"La Fin de la Journée"

(sim, sou uma gaivota com cultura que sabe ler em francês).

Está um dia de sol

(ainda bem, odeio dias de chuva!),

e no entanto, está tão frio...o Inverno deve estar para vir, em breve, se é que já não chegou. Ele não precisa de uma porta para entrar: precisa de uma mão estendida. De uma mão aberta. De um pequeno empurrão.

E eis que o rapaz se levanta. Dirige-se à Torre Vasco da Gama

(não sei porquê, está fechada)

e fica cá em baixo, na base da Torre

(que aborrecimento!)

a olhar lá para cima.

Já vos disse onde moro? Não? Construí o meu ninho no topo da Torre, mesmo lá em cima, por cima da parte aberta aos visitantes, de forma a poder ver tudo o que se passa na EXPO. Nos Olivais. Em Moscavide. Em Lisboa. Nada me escapa.

O rapaz continua a olhar, e não mexe um músculo que seja. Fosse ele quem fosse, perdi todo o meu interesse. O meu único interesse agora é voltar para o meu ninho.

E é isso que faço, abro as asas e subo. Chego ao meu ninho, e olho em volta. Tudo está como costuma estar, à excepção de um pormenor: o rapaz não está lá, na base da Torre. Olho para a parte aberta aos visitantes. Está lá o rapaz. Como é que ele chegou lá tão rapidamente? Tenciono descobri-lo.

E então, doce, triste, e lentamente, como numa longa valsa dançada por dois apaixonados,

o rapaz tirou uma arma do bolso,

(e eu descia, lentamente, descia),

pôs a arma na boca,

(e eu descia, tristemente, descia),

premiu o gatilho,

(e eu descia, não sei porquê mas, descia),

um estampido, um ruido de morte,

(eu descia, com ouvidos que não tenho, descia),

e uma bala, a atravessar a cabeça do rapaz, a dirigir-se a mim,

(e eu descia, tarde demais, descia),

o rapaz achou-se caído numa poça do seu sangue,

(e eu descia, eternamente, descia),

e um livro de poemas, que devido ao sangue que agora o cobria, nunca mais voltaria a ser lido.

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