A vida traduz-se em letras

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Odeio O Camões

António Lobo Antunes diz "Soube que era um génio quando comecei a encontrar o romance nas montras das livrarias; quando o retrato principiou a aparecer nos jornais; quando dei a primeira entrevista à televisão."
Ora, eu tenho quinze anos. Ainda não encontro o romance nas livrarias, não compreendo bem porquê, chego-me lá e pergunto se tem algum escrito de João de Matos e a resposta é sempre negativa (discriminação, certamente, pela minha idade), cuidando que nas livrarias não me acho.
Eu soube que era um génio quando, no sétimo ano, ganhei um concurso de escrita em inglês. Acho que nem concorri pelo prémio (o que é certo é que a Escola Secundária Eça de Queirós ganhou um laboratório de línguas, segundo sei), foi mesmo pelo reconhecimento. Quando me entregaram a carta a dizer que tinha ganho, julguei-me uma estrela como aquelas que se colam na tela do cinema, como aquelas que se penteiam durante duas horas e maquilhagem no género feminino.
Comecei a sair á rua apenas na segurança de dois amigos (todas as estrelas têm guarda-costas), depois de passar duas horas em frente ao espelho a arranjar o cabelo, e, antes de passar por cada esquina, tomava especial atenção aos paparazzi. Eles nunca estavam lá, digo, eu nunca os vi (aqueles malandros sabem esconder-se bem), mas sei que sou um génio.
António Lobo Antunes deve ter imensos fãs a pedirem-lhe autógrafos (eu sou um deles). Eu, bem, não é que não tenha fãs, tenho fãs, tenho fãs que lêem as minhas crónicas e que me dizem Ai meu Deus que tristeza descomunal, tenho fãs que lêem a minha poesia e me dizem Ai meu Deus que grotesco, tenho fãs que lêem os meus contos e me dizem Ai meu Deus isso não é um conto é uma crónica, mas tenho fãs. Para dizer a verdade, desconfio que hei-de voltar a contratar o Tomás e o Pedro como guarda-costas. É que no Camões tenho imensos fãs.
Ainda no outro dia, quando estava na companhia da Bia e do Jordann, uma rapariga do décimo segundo ano chegou-se ao pé de mim
-Tu não és aquele que
e eu sim, sou aquele que escreve tanto e que merece reconhecimento literário, a retirar já a caneta do bolso para preparar o autógrafo
-...falou muito mal da Lista C em tempo de campanha?
Política. Outra vez. E no entanto, nunca a Literatura.
A culpa deve ser dos funcionários (só pode), porque neste momento odeio o Camões.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Respondendo a Marta

Querida Marta,
adoraria poder dizer-te que está tudo bem comigo. Acontece que não está. Não está nunca, e não sei se alguma vez estará.
Hoje o Bernardo retratou a voz de todos os que por aqui passam: que isto é tudo muito depressivo, que isto é tudo muito triste, que Ó meu Deus tu vais-te suicidar, que, em suma, parvoíces.
Marta, juro que já não o faço de propósito. Mas como poderei eu escrever sobre o sol, se o ceu está sempre coberto de chuva. Estamos no Inverno. É normal que assim seja. E eu sei que tu não pensas o mesmo que os outros.
Sabes, Marta, hoje chove. Chove tudo, aqui no seminário: chovem as nuvens, chove o piano lá dentro que contrasta bastante com o sol da guitarra que berra desafinada, chovem as paredes e chovo eu. Desculpa se manchar esta carta com lágrimas, desculpa se não a conseguires ler por causa disso mas, Marta, eu não consigo. Já não o evito e já o faço sem consciência.
Pensando melhor, acho que não te vou conseguir enviar esta carta. Custa-me demasiado preocupar-te com os meus problemas. Porque eu não quero que te preocupes. Está tudo bem. Publicarei isto, talvez, no meu blogue. Como uma nova carta (e eu que raramente respondo a correspondência nunca te falhei em nada) para alguém inexistente e que eu sei que é bem real.
Marta, por aqui isto não vai bem. Já não me lembro de ti, já não me lembro do toque da tua pele, já não me lembro da arte dos teus lábios tocando levemente os meus...já não me lembro de quem amo. E sofro, quiçá, por isso. Sonho contigo, acordo e desapareces. Escrevo para ti no escuro, acendem uma luz e desapareces. Espero por ti na escola, tomo consciência de que não sou nada e desapareces. Será que, por uma vez ou outra poderias ficar? É que tenho muitas saudades tuas, e a escuridão com que escrevo esta carta começa a ferir-me os olhos. As velas nunca iluminaram o meu caminho.
Tenho desculpas a apresentar-te: sou fraco e não resisti à tentação. E garanto-te que me custa a admiti-lo, porque encontrar um espaço isolado neste sítio onde ninguém me veja...é difícil. Será que é por isso que não me amas? Ou será por eu ser eu? Quando te poderei dar a mão de novo? Quando poderei inalar o teu doce cheiro?
Ó Marta, a falta que me fazes! Ninguém poderá nunca imaginar! Nem eu o concebo, sequer! E agora grito o teu nome(Marta! Marta! Marta! Marta!), esperando que abras a porta deste quarto de onde te escrevo, acendas as luzes que a escuridão começa a ferir-me os olhos, deslizes levemente até à secretária, e não te peço um beijo, não te peço um beijo, não te peço um beijo, não te peço um beijo, não te peço um beijo até que tu não mo dês; o que preciso mesmo, é de te dar a mão, e que tu coloques a tua boca levemente sobre a minha, para recordar o tempo em que era vivo.
Marta, chamaram-me de "artista". E no entanto vejo mais arte na música que chove das mão do Tomás, lá dentro, ao piano, do que nas palavras que te escrevo.
E por isso não te envio esta carta, por consequência das mil e uma utilizações de uma vela. Esta carta é uma delas.
A décima quarta sonata de Beethoven soa, soa, e os acordes, fantasmas, atravessam a parede do meu quarto não sei bem como (talvez tenham entrado por onde a água da chuva entrou, hoje á noite), penetram o meu ser e, de repente, és tu no meu quarto, e eu envergonhado de caneta na mão. Rebenta a caneta, como uma bolha de sabão da autoria de uma qualquer criança, rebenta a memória que tenho de ti, vêm as saudades que me consomem e, por consequência, a nostalgia.
Marta, quando te poderei voltar a ver? Quando poderei voltar a sentir os teus lábios nos meus? Quando te poderei dar a mão?
Hoje à noite vou poder utilizar o meu telemóvel, e já sei qual o primeiro número a marcar.
Deixo-me na indecisão do enviar ou não enviar ou publicar no meu blogue o raio da carta, faça o que faça só te garanto que será acompanhada por uma sonata de Beethoven, por um pedido de desculpas por não escrever sobre o sol há tanto tempo, por um beijo meu, pela minha nostalgia, e pela esperança de que um dia esperes por mim quando eu for ao teu encontro.
João

sábado, 19 de dezembro de 2009

A Essência da Maçã Verde

Sempre que entravas no metro, eu já estava lá à tua espera (sabia que entravas uma paragem depois de mim, sabia que nunca te atrasavas, sabia que gostavas de andar na primeira carruagem). Se me vias? É óbvio que me vias, sim, está bem, não falavas comigo, mas vias-me, tenho a certeza disso.
Lembro-me da forma como tu entravas e na forma de como todos os outros falavam nos pavorosos minutos do sismo de ontem à noite. Se tu me falavas de sismos? Não, está bem, não me falavas de sismos, mas tenho a certeza de que querias falar e tenho também a certeza de que eras demasiado tímida para o fazer. Tenho a certeza de que te lembras de mim. Aposto que não havia assim tanta gente a entrar no autocarro de Dostoievsky na mão, aposto que não havia ninguém de fato de seda, aposto que reparavas nos meus arranjos já que eu só me arranjava para tu reparares.
Lembro-me de passares por mim e de tentar cheirar o teu perfume que cheirava a maçã. Verde. Maçã verde. E é por me ter vestido de fato, por ter andado de Dostoievsky na mão, por ter tentado cheirar o teu perfume mil vezes que eu sei que tu te lembras de mim.
Eu também tentava não me esquecer de ti (excepto quando trazias um livro de Paulo Coelho, ou de Nicholas Sparks) dos teus cabelos, dos teus olhos, do teu perfume (que cheirava tanto, tanto, tanto a maçã verde) e, subitamente, o condutor do autocarro vira o volante numa curva apertada e tu cais sobre mim, o teu corpo a tocar no meu, e eu sei que fizeste de propósito. Com tanta tecnologia que há hoje em dia, toda a gente contraria as leis da física, mas as leis de um perfume que cheirava assim tanto a maçã verde, essas oh!, essas não se contrariam.
Não percebi porque é que deixaste de andar na primeira carruagem do metro das oito e trinta e sete, mas julgo que em breve voltarei a sentir o cheiro da maçã verde.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Manifesto Anti-Sparks

Morte a Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Estou cansado de escrever crónicas. Digo isto, não porque já tenha escrevido muitas, mas porque estou mesmo cansado de crónicas. Mas só há uma coisa que excede o meu cansaço pelas crónicas: Nicholas Sparks.

Almada, peço-te desculpa por te tentar encarnar desta forma tão própria (e possivelmente redutora) da minha pessoa, mas acho que é mesmo necessário. Isto porque hoje, na minha aula de Português, três pessoas, não, espera, ouve bem, TRÊS!!! pessoas decidiram apresentar a "obra" que deviam ter lido ao longo do período e todas falaram sobre Nicholas Sparks! Mas que raio?!

Morte a Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Morte aos que o seguem ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Almada, estou a exagerar. Tenho a certeza disso. Também tenho a certeza de que, depois da tortura que foi esta aula de Português, se alguém me diz a palavra "beijo" eu suicido-me. E sei também admitir os meus erros: ao longo da minha vida, sempre afirmei que Nicholas Sparks (estou farto de lhe dar um respeito que ele não merece, chamar-lhe-ei de agora avante de "homenzinho") era o pior escritor do mundo. Agora percebo que o homenzinho conseguiu transmitir-me um sentimento: não, não fiquei perdidamente apaixonado, mas acredito que sou capaz de ter ficado perdidamente enojado.

Morte a Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Morte a quem transforma o Amor numa sensação tão boa como mastigar meias utilizadas durante o mês de Junho inteiro!

Suicida-te Sparks!!

Morre e deixa esta geração em paz!

Quem gosta de Sparks não é um quem, mas um quê!

Quem gosta de Sparks gosta de comer meias sujas!

Quem gosta de Sparks que morra também!

Sparks serve para nos mostrar que o raio de um livro pode ter um final somente lucrativo!

Sparks tem os maiores bolsos do mundo!

E há quem goste! E há quem aplauda! E há quem siga! E há quem compra! E há quem peça autógrafos! E há quem seja louco!

Morte ao Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Sparks é o declínio de uma sociedade!

Sparks só conhece a teoria de um beijo!

Ler Sparks é comer massa crua!

Se Sparks é Americano, então tenho orgulho em ser Português!

Morte ao Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Sparks escreve a Literatura dos cães!

Se Sparks fosse queimado vivo, o mundo renderia muito mais!

Sparks produz saliva por uma população inteira!

Sparks não é contemporâneo! Sparks é estupidez intemporal!

Sparks escreveu quinze livros e mudou apenas o nome das personagens!

Morte ao Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Sparks é o apocalipse já há muito profetizado!

Sparks vem trazer terror ao mundo com os seus beijos intermináveis!

Sparks não escreve sobre amor; ninguém que ame verdadeiramente pode dizer o que ele diz!

Se Sparks conhece o amor, eu prefiro não o conhecer!

Se Sparks é inteligente, prefiro ser ignorante!

Morte ao Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Morte aos cordeiros que criticam seguindo o Sparks pastor!

Morte a todos os que só querem ler Sparks!

Sparks não escreve; vomita!

Quem só lê Sparks não lê; engole vomitado!

Sparks é nojento!

Sparks dispõe de um "toque de Sparks" que lhe permite transformar tudo o que toca em algo nojento!

Morte ao Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Enterrem o Sparks como favor à Humanidade!

Sparks dá um melhor contributo à Humanidade morto do que vivo!

Sparks envergonha a América por ter nascido lá!

Sparks é mentiroso!

Sparks é asqueroso!

Quando leio Sparks tenho vontade de ser analfabeto!

Morte ao Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Deviam torturar Sparks obrigando-o a ler tudo o que escreveu!

Sou contra a pena de morte, mas mudo de decisão se estivermos falar do Sparks!

O homenzinho é assassino e matou a Literatura!

Morte à ignorância das Margaridas, e das Marias, e das Anas, e das Amélias, e dos que lhe mentem dizendo que é bom!

O maior castigo que Sparks tem é o actual: todos os fãs lhe mentem dizendo que ele escreve bem!

Morte ao Sparks ZÁS-TRÁS-PÁS!!

Sparks é o cúmulo do comercial!

Sparks é tão repetitivo, que o seu próximo êxito será um livro com uma frase repetida mil vezes!

E há quem o ame! E há quem realize o que ele escreve! E há quem o adore! E há quem guarde fotografias dele!

Se não matarem Sparks morro eu de desgosto!

Vende Sparks Vende Vende Vende Vende Vende Vende Vende Vende Vende Vende Vende Vende abaixo a Literatura e Vende Sparks Vende Vende Vende Vende Vende Vende Vende e Morre!

Sparks demonstra que nem tudo o que é made in America é de qualidade! Sparks é a encarnação da estupidez! Sparks não pode ser verdadeiro!

Morte a Sparks (e termino Almada) ZÁS-TRÁS-PÁS!

O Que Acontece Depois Do Final

Desce a cortina, termina a peça.
O actor despede-se com uma vénia do público que aplaude entusiasticamente. E uma vénia, e duas, e três, e um sorriso, e muitos sorrisos, e abandona o palco. Vai de encontro ao resto do elenco. Fala do seu desempenho medíocre para que alguém lhe diga que foi excelente. E desenha um sorriso na seu própria cara.
Depois, tudo terminado (peça, celebrações, olhares e comentários indiscretos sobre os beijos que os membros do elenco trocavam ilicitamente), dirige-se a um espelho. E já não é ninguém.
Tudo terminou quando o actor se despediu do público, percebem? Não sei se me faço entender, mas um actor só será actor enquanto pisar um palco. E deixou de o pisar no momento em que se inclinou para fazer aquela vénia.


Ó actor, eu julgava-te tão humano...e dei por ti a seres um idiota. Tu bem sabes que acredito que os humanos possam ser idiotas, mas tu actor, tu passaste os limites.
Não tentes ser humano fora do palco, que só o serás se falares por palavras de outrém. Tenho pena de ti, actor, por te cingires a um guião, a um destino.
Olha, talvez seja a diferença entre a minha pessoa e a tua, actor que te revelas ao espelho, que eu crio personagens, e tu encárna-las. Serás melhor ou pior que eu? Nem um nem outro, mas não te considero humano.


Ó actor, que fizeste tu para mereceres tanto rancor da minha parte? Foi pelas tuas atitudes? Foi por teres pensado no que pensaste?
Olha, vou ser muito sincero: apesar de não te considerar humano, não estou zangado contigo. Até compreendo a tua tristeza: só no palco és humano. E deve ser horrível estar condicionado a uma peça de teatro para atingir a humanidade.


Actor, só te vou pedir uma coisa: aproveita o que não tens. Aproveita o não seres humano, que isto é (posso te garantir) um grande fardo. Sim, o maior peso é mesmo ser-se humano. Por isso é que tantos não o são.
Mas não desistas nunca de viver, actor, deixa isso para poetas e cronistas e suspiros seguidos de lágrimas, já percebi que isto de sofrer não é bem para ti. Não chores, actor, não chores, não humano o suficiente para chorares. Não penses nisso, actor, larga esse pedacinho de vidro, já te disse mil vezes que, apesar da tua vida humana terminar naquela vénia, não te podes matar, visto o facto de não poderes nunca imitar um escritor.
Actor, tenho-te a dizer para nunca acreditares no que escrevo. Tenho uma tendência enorme para mentir. Consequências da escrita, talvez.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Acontece Que Não Pode Ser

- O senhor desculpe, mas isso não pode ser.
- E não pode ser porquê?
- Porque acontece que não pode ser.
- E não pode ser porquê?
- Ouça lá; eu vim para aqui beber um café descansado, e não estou para ser chateado. Por isso, ou o senhor me traz o raio de um café decente, ou vou ter de pedir o livro de reclamações!
- E o senhor quer-me explicar qual é o mal desse café?
- Não tenho nada a explicar.
- Eu preciso de uma explicação, no mínimo.
- Pois, mas acontece que não pode ser.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Explicação De Um Não À Nádia

Que dirás tu, Nádia, quando eu quiser entrar na noite escura?

Nádia,
vemo-nos lá, nas reuniões, no metro, onde quer que seja, na escola, nas aulas, onde quer que seja, vemo-nos lá e um sorriso, sorrio, sorris-me, sorrio por dentro e pergunto-me se tu também sorriste por dentro, se também ficaste um pouco mais quentinha que hoje faz frio visto o facto de estarmos no Inverno, Nádia, eu olho e tu não me olhas, o que se passa, estás zangada?, não, não, eis o teu olhar, que alívio!, estava a ver que estavas zangada comigo, e tu coras e eu sorrio ainda mais, e tu baixas o olhar a sorrir também, e eu a não caber em mim de felicidade, de calor, de estar no Inverno e não estar, e uma professora a perguntar pelos meus Hausaufgaben, e eu Nein, Ich habe vergessen, e por um momento não sorri não fiquei quente nem fiquei no Inverno não ficando, só por um momento juro, e por culpa da professora, por culpa dela não te escrevo nada há uma semana por culpa dela não te recito um poema lírico qualquer há uma semana por culpa da professora não te vejo há uma semana e estou (digamos que) triste, estou certo que tu também porque há uma semana que não sou humano, visto o facto de não te recitar nem escrever nada há uma semana, Nádia, não fiques triste não chores que eu não quero que tu chores é que sabes, olhar-te assim e ver-te sorrir é bom é tão bom, mas depois este ter de te escrever coisas bonitas e felizes quando na verdade não é em ti que penso mas em quem me cobre com um manto negro chateia-me bastante, a sério, não suporto isto de ter de te mentir, por isso paremos nos sorrisos que já são demais paremos nos corares que já são demais paremos nas trocas de olhares mesmo em frente à professora de alemão que já são demais, porque eu sei, Nádia, eu sei que ninguém vai ler isto do príncipio ao fim
-As tuas crónicas são tão grandes que eu não tenho paciência para as ler
mesmo tu, Nádia, não as leias que eu só quero que leias as coisas bonitas que te escrevo (ou que te escrevi), não leias que me quero matar porque não quero não leias que eu ainda a amo que eu não amo, já te disse mil vezes que não sou eu quem escreve mas quem toma conta da minha mão quando me sento no sofá de computador ao colo não sou eu juro!, Nádia, tudo isto para te dizer que se trocamos olhares então trocamos olhares se trocamos sorrisos então trocamos sorrisos se trocamos corares então trocamos corares, mas não me peças um beijo porque, para dizer a verdade, não te vou responder que sim, mas também acho que não te vou dizer que não, Nádia, não te inclines, já te disse que não te vou beijar, Nádia, não me ames que eu já te disse que podemos trocar olhares e sorrisos e corares à vontade mas não beijos e vai daí talvez não talvez sim, porra Nádia!, mas que porra de indecisão, para que é que te foste inclinar e pedir-me um beijo se sabes que eu quero apenas sorrisos e olhares e corares e mais nada visto o facto de ainda não a ter esquecido e de ela ainda me mandar cartas, ainda no outro dia me mandou uma a perguntar se eu estava bem e eu respondi que não que estou severamente deprimido e que me receitaram Escitalopram e que eu quero tomar o raio dos comprimidos todos de uma só vez a ver se me esqueço da depressão com a mesma mão com que escrevo, olha a ironia!, e ela nada ela muda ela em silêncio, porra Nádia, não vês que ela não me responde e que eu não te posso beijar, não vês que sofro, não te posso recitar a poesia bonita de Camões e Baudelaire deprimido (vai daí talvez possa), recuso-me, porque o silêncio, esse sim, é a pior resposta, e eu Nádia, não estou feliz para trocar olhares e sorrisos e corares, porque estou prestes (se é que já lá não estou) a entrar na noite escura, e na noite escura, Nádia, não se trocam sorrisos e olhares e corares, por isso desabitua-te da poesia de Camões de Baudelaire e da minha que na noite escura eu não ta vou poder dar, visto o facto de ela não me responder, e o silêncio ser a pior resposta.

Por isso, agora pergunto-te: que dirás tu, Nádia, quando eu entrar na noite escura?
Em Homenagem a A.L.A., por me mostrar o bom da noite escura.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Pesar Da Memória

Hoje acordei, vindo de um sonho. É engraçado, não foi um sonho, mas também não foi um pesadelo. Se calhar foi uma memória, sim, é capaz de ter sido uma memória da qual eu já não me recordava.
O que é certo é que era uma memória dolorosa, do tempo em que eu ainda te dava a mão, como uma criança ignóbil quando comparado contigo, do tempo em que eu te sorria e recebia um sorriso como resposta (hoje recebo uma espécie de espasmo), do tempo em que eu te amava e me sentia correspondido. E como aquela memória veio para ficar, sento-me no sofá e vejo a tinta da parede a falar comigo por estalos, deixo que a monotonia da vida se entranhe em mim, e dirijo-me à cozinha. Ainda com aquela memória dolorosa, deixo-me levar para a cozinha, contigo de mão na minha, cuidando que abro a gaveta da cozinha, uma faca no meu pulso, e de repente batem à porta. Era a minha mãe a querer saber se estava bem, a querer saber se tenho andado a comer bem, e eu a pensar que não devia nunca ser vizinho da minha mãe porque depois há chatices destas: uma pessoa quer suicidar-se e aparece a mãe a querer saber se tenho andado a comer bem.
Como julgo que seja impossível alguém suicidar-se depois da mãe lhe ter perguntado se andava a comer bem, lá vou eu para o sofá ver as horas arrastarem-se.
E elas arrastaram-se, disso não haja dúvida, tanto não há dúvida que adormeci, deixei-me levar pelas horas, pela monotonia de estar vivo, pela tua mão na minha, e adormeci. Lá fui eu para o nosso anfiteatro outra vez, e lá estavas tu, a sorrir-me em resposta, a dar-me a mão, a corresponder ao meu amor, e eu, feito parvo, a dormir, julgo, desconheço se dormia ou se morri ali mesmo.
Devo ter adormecido, pois subitamente dei por mim na minha sala, no meu sofá (novamente), e o meu telefone a tocar porque o Tomás queria saber se eu queria ir à bola com ele (já lhe disse tantas vezes que não gosto de futebol), e eu só me lembrava da Margarida, nos cabelos da Margarida, no corpo da Margarida, no riso e no sorriso da Margarida, cuidando que fui ao meu quarto, abri a segunda gaveta do meu armário e enchi a mão de Escitalopram, pronto a por aquilo tudo na boca, e lembro-me do Tomás, do raio do Tomás, que me fez lembrar do raio do jogo do Benfica que já prometi ir ver com ele na próxima semana, que não sou pessoa para faltar às minhas promessas, largando os comprimidos no chão, volto ao sofá, volto à monotonia da vida, volto a ver as horas a arrastarem-se.
Liguei a televisão, mudei de canal de dois em dois segundos, e fiquei a pensar no nada. Minto, pensava, se calhar, no porquê de me querer suicidar. Talvez pela Margarida. Talvez porque ela fugiu com um neurocirurgião, e eu fiquei por onde não devia. Mas porquê matar-me? Basta ignorá-la, basta não falar com ela, basta que ela não fale comigo. Não vou por término à minha existência por ti, não julgues que vou porque não vou.
Pensava eu isto, e decido ir ao meu e-mail. Na caixa de entrada um mail da Margarida a diferenciar-se, de assunto "Tudo bem?", e o anfiteatro a voltar, a Margarida a voltar, as mãos da Margarida, a nostalgia da Margarida, as saudades da Margarida, a Margarida a voltar, cuidando que nem respondo, quero responder mas não respondo, visto estar a dirigir-me novamente ao quarto, procurar a minha Magnum 357, procurar o céu da minha boca.
Desculpa não te ter respondido, mas julgo, não tenho a certeza depois daquele estampido, mas julgo que adormeci.