A vida traduz-se em letras

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O Que Acontece Depois Do Final

Desce a cortina, termina a peça.
O actor despede-se com uma vénia do público que aplaude entusiasticamente. E uma vénia, e duas, e três, e um sorriso, e muitos sorrisos, e abandona o palco. Vai de encontro ao resto do elenco. Fala do seu desempenho medíocre para que alguém lhe diga que foi excelente. E desenha um sorriso na seu própria cara.
Depois, tudo terminado (peça, celebrações, olhares e comentários indiscretos sobre os beijos que os membros do elenco trocavam ilicitamente), dirige-se a um espelho. E já não é ninguém.
Tudo terminou quando o actor se despediu do público, percebem? Não sei se me faço entender, mas um actor só será actor enquanto pisar um palco. E deixou de o pisar no momento em que se inclinou para fazer aquela vénia.


Ó actor, eu julgava-te tão humano...e dei por ti a seres um idiota. Tu bem sabes que acredito que os humanos possam ser idiotas, mas tu actor, tu passaste os limites.
Não tentes ser humano fora do palco, que só o serás se falares por palavras de outrém. Tenho pena de ti, actor, por te cingires a um guião, a um destino.
Olha, talvez seja a diferença entre a minha pessoa e a tua, actor que te revelas ao espelho, que eu crio personagens, e tu encárna-las. Serás melhor ou pior que eu? Nem um nem outro, mas não te considero humano.


Ó actor, que fizeste tu para mereceres tanto rancor da minha parte? Foi pelas tuas atitudes? Foi por teres pensado no que pensaste?
Olha, vou ser muito sincero: apesar de não te considerar humano, não estou zangado contigo. Até compreendo a tua tristeza: só no palco és humano. E deve ser horrível estar condicionado a uma peça de teatro para atingir a humanidade.


Actor, só te vou pedir uma coisa: aproveita o que não tens. Aproveita o não seres humano, que isto é (posso te garantir) um grande fardo. Sim, o maior peso é mesmo ser-se humano. Por isso é que tantos não o são.
Mas não desistas nunca de viver, actor, deixa isso para poetas e cronistas e suspiros seguidos de lágrimas, já percebi que isto de sofrer não é bem para ti. Não chores, actor, não chores, não humano o suficiente para chorares. Não penses nisso, actor, larga esse pedacinho de vidro, já te disse mil vezes que, apesar da tua vida humana terminar naquela vénia, não te podes matar, visto o facto de não poderes nunca imitar um escritor.
Actor, tenho-te a dizer para nunca acreditares no que escrevo. Tenho uma tendência enorme para mentir. Consequências da escrita, talvez.

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