Hoje acordei, vindo de um sonho. É engraçado, não foi um sonho, mas também não foi um pesadelo. Se calhar foi uma memória, sim, é capaz de ter sido uma memória da qual eu já não me recordava.
O que é certo é que era uma memória dolorosa, do tempo em que eu ainda te dava a mão, como uma criança ignóbil quando comparado contigo, do tempo em que eu te sorria e recebia um sorriso como resposta (hoje recebo uma espécie de espasmo), do tempo em que eu te amava e me sentia correspondido. E como aquela memória veio para ficar, sento-me no sofá e vejo a tinta da parede a falar comigo por estalos, deixo que a monotonia da vida se entranhe em mim, e dirijo-me à cozinha. Ainda com aquela memória dolorosa, deixo-me levar para a cozinha, contigo de mão na minha, cuidando que abro a gaveta da cozinha, uma faca no meu pulso, e de repente batem à porta. Era a minha mãe a querer saber se estava bem, a querer saber se tenho andado a comer bem, e eu a pensar que não devia nunca ser vizinho da minha mãe porque depois há chatices destas: uma pessoa quer suicidar-se e aparece a mãe a querer saber se tenho andado a comer bem.
Como julgo que seja impossível alguém suicidar-se depois da mãe lhe ter perguntado se andava a comer bem, lá vou eu para o sofá ver as horas arrastarem-se.
E elas arrastaram-se, disso não haja dúvida, tanto não há dúvida que adormeci, deixei-me levar pelas horas, pela monotonia de estar vivo, pela tua mão na minha, e adormeci. Lá fui eu para o nosso anfiteatro outra vez, e lá estavas tu, a sorrir-me em resposta, a dar-me a mão, a corresponder ao meu amor, e eu, feito parvo, a dormir, julgo, desconheço se dormia ou se morri ali mesmo.
Devo ter adormecido, pois subitamente dei por mim na minha sala, no meu sofá (novamente), e o meu telefone a tocar porque o Tomás queria saber se eu queria ir à bola com ele (já lhe disse tantas vezes que não gosto de futebol), e eu só me lembrava da Margarida, nos cabelos da Margarida, no corpo da Margarida, no riso e no sorriso da Margarida, cuidando que fui ao meu quarto, abri a segunda gaveta do meu armário e enchi a mão de Escitalopram, pronto a por aquilo tudo na boca, e lembro-me do Tomás, do raio do Tomás, que me fez lembrar do raio do jogo do Benfica que já prometi ir ver com ele na próxima semana, que não sou pessoa para faltar às minhas promessas, largando os comprimidos no chão, volto ao sofá, volto à monotonia da vida, volto a ver as horas a arrastarem-se.
Liguei a televisão, mudei de canal de dois em dois segundos, e fiquei a pensar no nada. Minto, pensava, se calhar, no porquê de me querer suicidar. Talvez pela Margarida. Talvez porque ela fugiu com um neurocirurgião, e eu fiquei por onde não devia. Mas porquê matar-me? Basta ignorá-la, basta não falar com ela, basta que ela não fale comigo. Não vou por término à minha existência por ti, não julgues que vou porque não vou.
Pensava eu isto, e decido ir ao meu e-mail. Na caixa de entrada um mail da Margarida a diferenciar-se, de assunto "Tudo bem?", e o anfiteatro a voltar, a Margarida a voltar, as mãos da Margarida, a nostalgia da Margarida, as saudades da Margarida, a Margarida a voltar, cuidando que nem respondo, quero responder mas não respondo, visto estar a dirigir-me novamente ao quarto, procurar a minha Magnum 357, procurar o céu da minha boca.
Desculpa não te ter respondido, mas julgo, não tenho a certeza depois daquele estampido, mas julgo que adormeci.
A vida traduz-se em letras
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
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