A vida traduz-se em letras

domingo, 10 de janeiro de 2010

Explicações Em Vão

Peço-vos desculpa. Tenho mais é que vos pedir desculpa. Um texto por semana, que vergonha! E nem vos explico um porquê. Mas pronto, ah e tal, perdoem-me. Vá, a verdade é que não me tem apetecido publicar nada. As minhas últimas crónicas, guardo-as só para mim. As que, normalmente, viriam para aqui, acabaram no caixote do lixo; sabem, não queria mesmo nada ter de vos contar.
A fidelidade, sabem, é importante. Daí explicar-vos isto. E de confessar que desconheço um grande mundo por aí fora. E que invejo muita gente. E que conheci gente importante nos últimos tempos. E que me apercebi de grandes mudanças em mim e no que me rodeia.
O ano novo? Porque é que não escrevi nada sobre o ano novo? Acham que deveria ter escrito? Posso escrever agora umas linhas pequeninas, não faz mal. Ano novo, e tal como toda a gente diz, vida nova (yac! que cliché!); as minhas mudanças principais ocorreram um pouco antes do dia trinta e um, mas não faz mal, pois não?, a verdade é que já não me escorrem lágrimas, e que decidi esquecer por completo certas e determinadas memórias (tanto quanto me for possível), é que, sabem, já estava a ficar farto de ser torturado constantemente pela minha memória, estava farto de ser carrasco de mim mesmo. Agora estou melhor, acho eu.
Caras novas. Vidas novas a rodearem-me. As velhas cercam-me e ameaçam com as suas bengalas, o neo-realismo em mim torna-se mais súbito do que eu esperava. Tudo se clareia e vejo, enfim, um final.
Cedo, cedo, cedo mas não demasiado, tudo terminará bem.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Inês Posta Em Sossego

Estavas, linda Inês, posta em sossego. Não que eu quisesse, mas se tu me dizes
-Eu amo-te Tiago
eu fico sem saber o que dizer e acho por bem bater-te, uma estalada na cara nem eu sei bem porquê, ao cair bates com a cabeça na mesa e repetes
-Eu amo-te Tiago
ofereço-te mais dois pontapés e é logo uma confusão
(corre um fiozinho de sangue da tua testa)
porque eu não sei o que fazer em casos destes, Inês, nunca me disseste o que deveria fazer depois de te bater, por isso fiquei a olhar para ti e a pensar na altura em que me apresentaste aos teus pais, que tinhas de ir à casa de banho, o teu pai a perguntar
-Isto é o melhor que ela arranja?
a tua mãe a apontar-me o rolo da massa como se tratasse de uma faca
-Espero que faça a minha filha muito feliz senão
a tua mãe a correr para a cozinha
-Ai que o jantar se está a queimar
e eu sem saber o que fazer, porque não me tinhas dito, Inês, o que deveria fazer, ao contrário de quando me dizias aquelas pequenas coisas do dia-a-dia
-Por favor Tiago não te esqueças de comprar leite por favor Tiago não fumes mais por favor Tiago não me batas por favor não por favor Tiago não me batas mais por favor
mas agora estás no chão,
(o sangue da tua testa é já um pequeno rio)
penso que morta, posta em sossego, com uma expressão no rosto como quem pergunta Porque é que fizeste isto, mas também não tenho uma resposta, é só que gosto muito de ti, Inês, mas acho que não te amo, e não gosto quando dizes isso, tu bem sabes, porque sempre que dizes
-Eu amo-te Tiago
é porrada garantida, uma estalada ou duas até caíres, mais alguns pontapés, e ficas tão linda, Inês, com o sangue a escorrer-te da testa, quase me esqueço que não te amo, que só gosto de ti apesar de estarmos casados, apesar de vivermos juntos, apesar de dormir contigo todas as noites, não te amo, Inês, por isso não me venhas com
-Eu amo-te Tiago
que isso eu não te admito, até porque já estou a ficar cansado das perguntas da polícia, dessa corja incompetente, que me diz
-Não se preocupe Senhor Doutor que a gente apanha o safado que fez isto à sua mulher
e eu
-Obrigado
cheio de agradecimentos,
eu
-Obrigado
para um mês depois essa mesma corja me dizer que a minha mulher tropeçou e bateu com a cabeça na mesa acabando por morrer, quando eu bem sei o que aconteceu mas não digo, com medo que me ponham na prisão, por isso respondo apenas
-Obrigado
a esperar que eles não percebam nada, porque quero estar aqui, Inês, e queria dizer-te
-Desculpa
mas é só que eu não te amo, apenas gosto de ti, apesar de nos termos casado, apesar de já termos vivido juntos, apesar de já termos dormido juntos durante muitas
todas (as)
noites, e por tudo isso, Inês, não me venhas com
-Eu amo-te Tiago
que isso eu não te admito mesmo, é melhor que fiques caladinha antes que dê uma ou duas estaladas na cara e mais alguns pontapés,
(o sangue era agora um pequeno mar)
talvez porque não te quero ver mais, Inês, porque só ficavas linda quando um fiozinho de sangue te escorria da testa,
-Desculpa
e eu agora já não sou casado, agora vivo sozinho, agora durmo sozinho,agora estou sozinho e incapaz de amar alguém para além de ti com um fiozinho de sangue a escorrer-te da testa
-Desculpa.
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
(o teu sangue devia ser um oceano, enchia a sala inteira)
comigo no teu funeral, a chover, a chorar, de sobretudo preto, a pensar que Camões se tinha enganado a escrever aquela vírgula naquele verso, porque na verdade
estavas linda, Inês, posta em sossego.



Trabalhos Artísticos por Diana Vozone, consoante interpretação pessoal da crónica.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Quando Os Olhos Se Fecham

Saiu apressadamente, correndo porta fora. Ainda se vestia quando estava a sair do meu quarto. Abriu a porta da minha casa e, subitamente, parou.
- Então...vemo-nos mais logo?
E pronto. A felicidade, sim, a felicidade de ela querer estar comigo.
-Sim, claro que sim. Depois mando-te uma mensagem, ou isso.
Ela sorri-me. Eu sorrio-lhe. Ele dirige-se ao carro dela, que está estacionado à porta de minha casa. E aconteceu tudo tão devagar...
Ele estava zangado (ou então era...bem, não sei, alguma coisa seria), e levou a mão dele de encontro à cara dela. Ela cai. E eu observo. Observo o pé dele a baloiçar para a frente e para trás, para a frente e para trás, para a barriga dela e para longe da barriga dela, e ela tosse, e ela cospe sangue, e eu observo. Mudo. Aterrorizado. Impotente pela faca cúmplice que, entretanto, me fora aplicada ao pescoço.
Pela altura em que ele termina, ela estende-se pelo passeio. Corre-lhe sangue de vários lugares diferentes do corpo.
A minha boca ainda sabe à boca dela. O meu corpo ainda tem o seu cheiro. A memória dela e da nossa noite ainda prevalece. Mas foi confrontada com a realidade. E a realidade é que ela está estendida no passeio, e corre-lhe sangue de vários lugares diferentes do corpo.
Ninguém viu. Devia ser demasiado cedo para as pessoas verem. Ou então viram e preferiram não ver. Fecharam os olhos, mas aposto que eles não vêem nada quando fecham os olhos. Eu vejo. Eu vejo, sabem? Eu vejo.
É mesmo fodido, fechar os olhos e lembrar-me de tudo.