Estavas, linda Inês, posta em sossego. Não que eu quisesse, mas se tu me dizes
-Eu amo-te Tiago
eu fico sem saber o que dizer e acho por bem bater-te, uma estalada na cara nem eu sei bem porquê, ao cair bates com a cabeça na mesa e repetes
-Eu amo-te Tiago
ofereço-te mais dois pontapés e é logo uma confusão
(corre um fiozinho de sangue da tua testa)
porque eu não sei o que fazer em casos destes, Inês, nunca me disseste o que deveria fazer depois de te bater, por isso fiquei a olhar para ti e a pensar na altura em que me apresentaste aos teus pais, que tinhas de ir à casa de banho, o teu pai a perguntar
-Isto é o melhor que ela arranja?
a tua mãe a apontar-me o rolo da massa como se tratasse de uma faca
-Espero que faça a minha filha muito feliz senão
a tua mãe a correr para a cozinha
-Ai que o jantar se está a queimar
e eu sem saber o que fazer, porque não me tinhas dito, Inês, o que deveria fazer, ao contrário de quando me dizias aquelas pequenas coisas do dia-a-dia
-Por favor Tiago não te esqueças de comprar leite por favor Tiago não fumes mais por favor Tiago não me batas por favor não por favor Tiago não me batas mais por favor
mas agora estás no chão,
(o sangue da tua testa é já um pequeno rio)
penso que morta, posta em sossego, com uma expressão no rosto como quem pergunta Porque é que fizeste isto, mas também não tenho uma resposta, é só que gosto muito de ti, Inês, mas acho que não te amo, e não gosto quando dizes isso, tu bem sabes, porque sempre que dizes
-Eu amo-te Tiago
é porrada garantida, uma estalada ou duas até caíres, mais alguns pontapés, e ficas tão linda, Inês, com o sangue a escorrer-te da testa, quase me esqueço que não te amo, que só gosto de ti apesar de estarmos casados, apesar de vivermos juntos, apesar de dormir contigo todas as noites, não te amo, Inês, por isso não me venhas com
-Eu amo-te Tiago
que isso eu não te admito, até porque já estou a ficar cansado das perguntas da polícia, dessa corja incompetente, que me diz
-Não se preocupe Senhor Doutor que a gente apanha o safado que fez isto à sua mulher
e eu
-Obrigado
cheio de agradecimentos,
eu
-Obrigado
para um mês depois essa mesma corja me dizer que a minha mulher tropeçou e bateu com a cabeça na mesa acabando por morrer, quando eu bem sei o que aconteceu mas não digo, com medo que me ponham na prisão, por isso respondo apenas
-Obrigado
a esperar que eles não percebam nada, porque quero estar aqui, Inês, e queria dizer-te
-Desculpa
mas é só que eu não te amo, apenas gosto de ti, apesar de nos termos casado, apesar de já termos vivido juntos, apesar de já termos dormido juntos durante muitas
todas (as)
noites, e por tudo isso, Inês, não me venhas com
-Eu amo-te Tiago
que isso eu não te admito mesmo, é melhor que fiques caladinha antes que dê uma ou duas estaladas na cara e mais alguns pontapés,
(o sangue era agora um pequeno mar)
talvez porque não te quero ver mais, Inês, porque só ficavas linda quando um fiozinho de sangue te escorria da testa,
-Desculpa
e eu agora já não sou casado, agora vivo sozinho, agora durmo sozinho,agora estou sozinho e incapaz de amar alguém para além de ti com um fiozinho de sangue a escorrer-te da testa
-Desculpa.
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
(o teu sangue devia ser um oceano, enchia a sala inteira)
comigo no teu funeral, a chover, a chorar, de sobretudo preto, a pensar que Camões se tinha enganado a escrever aquela vírgula naquele verso, porque na verdade
estavas linda, Inês, posta em sossego.
Trabalhos Artísticos por Diana Vozone, consoante interpretação pessoal da crónica.
A vida traduz-se em letras
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