A vida traduz-se em letras

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Respondendo a Marta

Querida Marta,
adoraria poder dizer-te que está tudo bem comigo. Acontece que não está. Não está nunca, e não sei se alguma vez estará.
Hoje o Bernardo retratou a voz de todos os que por aqui passam: que isto é tudo muito depressivo, que isto é tudo muito triste, que Ó meu Deus tu vais-te suicidar, que, em suma, parvoíces.
Marta, juro que já não o faço de propósito. Mas como poderei eu escrever sobre o sol, se o ceu está sempre coberto de chuva. Estamos no Inverno. É normal que assim seja. E eu sei que tu não pensas o mesmo que os outros.
Sabes, Marta, hoje chove. Chove tudo, aqui no seminário: chovem as nuvens, chove o piano lá dentro que contrasta bastante com o sol da guitarra que berra desafinada, chovem as paredes e chovo eu. Desculpa se manchar esta carta com lágrimas, desculpa se não a conseguires ler por causa disso mas, Marta, eu não consigo. Já não o evito e já o faço sem consciência.
Pensando melhor, acho que não te vou conseguir enviar esta carta. Custa-me demasiado preocupar-te com os meus problemas. Porque eu não quero que te preocupes. Está tudo bem. Publicarei isto, talvez, no meu blogue. Como uma nova carta (e eu que raramente respondo a correspondência nunca te falhei em nada) para alguém inexistente e que eu sei que é bem real.
Marta, por aqui isto não vai bem. Já não me lembro de ti, já não me lembro do toque da tua pele, já não me lembro da arte dos teus lábios tocando levemente os meus...já não me lembro de quem amo. E sofro, quiçá, por isso. Sonho contigo, acordo e desapareces. Escrevo para ti no escuro, acendem uma luz e desapareces. Espero por ti na escola, tomo consciência de que não sou nada e desapareces. Será que, por uma vez ou outra poderias ficar? É que tenho muitas saudades tuas, e a escuridão com que escrevo esta carta começa a ferir-me os olhos. As velas nunca iluminaram o meu caminho.
Tenho desculpas a apresentar-te: sou fraco e não resisti à tentação. E garanto-te que me custa a admiti-lo, porque encontrar um espaço isolado neste sítio onde ninguém me veja...é difícil. Será que é por isso que não me amas? Ou será por eu ser eu? Quando te poderei dar a mão de novo? Quando poderei inalar o teu doce cheiro?
Ó Marta, a falta que me fazes! Ninguém poderá nunca imaginar! Nem eu o concebo, sequer! E agora grito o teu nome(Marta! Marta! Marta! Marta!), esperando que abras a porta deste quarto de onde te escrevo, acendas as luzes que a escuridão começa a ferir-me os olhos, deslizes levemente até à secretária, e não te peço um beijo, não te peço um beijo, não te peço um beijo, não te peço um beijo, não te peço um beijo até que tu não mo dês; o que preciso mesmo, é de te dar a mão, e que tu coloques a tua boca levemente sobre a minha, para recordar o tempo em que era vivo.
Marta, chamaram-me de "artista". E no entanto vejo mais arte na música que chove das mão do Tomás, lá dentro, ao piano, do que nas palavras que te escrevo.
E por isso não te envio esta carta, por consequência das mil e uma utilizações de uma vela. Esta carta é uma delas.
A décima quarta sonata de Beethoven soa, soa, e os acordes, fantasmas, atravessam a parede do meu quarto não sei bem como (talvez tenham entrado por onde a água da chuva entrou, hoje á noite), penetram o meu ser e, de repente, és tu no meu quarto, e eu envergonhado de caneta na mão. Rebenta a caneta, como uma bolha de sabão da autoria de uma qualquer criança, rebenta a memória que tenho de ti, vêm as saudades que me consomem e, por consequência, a nostalgia.
Marta, quando te poderei voltar a ver? Quando poderei voltar a sentir os teus lábios nos meus? Quando te poderei dar a mão?
Hoje à noite vou poder utilizar o meu telemóvel, e já sei qual o primeiro número a marcar.
Deixo-me na indecisão do enviar ou não enviar ou publicar no meu blogue o raio da carta, faça o que faça só te garanto que será acompanhada por uma sonata de Beethoven, por um pedido de desculpas por não escrever sobre o sol há tanto tempo, por um beijo meu, pela minha nostalgia, e pela esperança de que um dia esperes por mim quando eu for ao teu encontro.
João

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