A vida traduz-se em letras

sábado, 14 de novembro de 2009

Novas Doenças

Já estou cansado ainda antes de chegar ao consultório. Pode ser que não tenha tantos pacientes como isso.
-Bom dia,
e a Teresa, a recepcionista está cumprimentada,
-Bom dia,
e um aceno de mão circular para cumrimentar todos os outros no consultório (porque é que não fiz o mesmo com a Teresa?)e a primeira tarefa do dia está feita. Falta a segunda: atender pacientes.
Sento-me na minha cadeira, olho para a poltrona vazia que se ergue à minha frente, e deixo-me levar pela divagação e pela monotonia das horas.
De repente, da mesma forma que uma criança rebenta uma bolha de sabão, um paciente rebenta a minha divagação com um abrir de porta.
-Bom dia,
(está a ficar uma frase padronizada),
-Bom dia
(aparentemente para ele também).
-Então o que o traz hoje aqui?
E ele muito quieto
-Acho que estou apaixonado.
E nós quietos.
-Então mas isso é motivo para vir a um psiquiatra?
-Bem, não sei mas
um relato pormenorizado da moça, um testemunho semelhante a uma doença em cujo o primeiro sintoma eu desisto de tentar compreender, palavras, palavras, palavras, e eu a pensar
("-Então mas isso é motivo para vir a um psiquiatra?")
mas não pergunto
(ética profissional)
embora me apeteça, não lhe pergunto, se calhar
(e é provável que calhe)
interno-o num manicómio e faço-lhe a vontade, olhem é isso mesmo, interno-o já aqui e agora. Mas primeiro uma pergunta:
-Então mas isso é motivo para vir a um psiquiatra?
-Bem, não sei, diga-me o senhor, é que
e lá vai ele outra vez, agora na sintomatologia amorosa (sintomas para uma doença que desconheço), que ele acorda e deita-se a pensar nela, que lhe envia uma carta todos os dias, que quando está com ela tudo é perfeito, que quando está com ela tem vontade de a abraçar e de não a largar nunca, que
-Chega, homem!
com ela tudo é tão bonito, que quando ela não responde às suas cartas ou mensagens ele delira de desespero, que
-Já chega, homem!
o mundo e a ideia que ela contruiu respectivamente para e dele são lindos, lindos, lindos, e eu farto, por isso um berro
-Já percebi, homem, cale-se!
de inveja, de desespero, porque "O pior pecado é não amar nunca", eu pecaminoso, eu triste, a pensar
("-Como é que este maluco pode ser escritor?",)
("-Então mas isso é motivo para vir a um psiquiatra?")
e a interná-lo.
Estas novas doenças, sabem como é, propagam-se com facilidade e rapidamente são uma pandemia.

1 comentário:

  1. Agora percebi: o amor é uma pandemia (como a gripe A). Finalmente a comparação faz sentido!

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