A vida traduz-se em letras

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Relato de um Crime


Acordei, e ela não estava ao meu lado. Tinha vontade de a matar, já desde ontem à noite

-Não, Tiago, não, não me proíbas de ir, por favor, eu juro que chego cedo, a sério, juro mesmo

mas que mania, mas que figuras

-Mariana, vem cá imediatamente

se isto passa pela cabeça de alguém, mas que modos, mas que maneiras, a querer saír às dez da noite, mas que figuras, Mariana, mas que modos,

-Adeus Tiago

e eu impávido, agora sereno, a ver a porta fechar-se, a ver a tinta da parede a secar, sentei-me e comecei a resolver as palavras cruzadas do jornal de ontem

-Porra Mariana, mas porque raio é que não compraste a porcaria do jornal?!

e voltei a olhar para a porta

(é bom para ela que chegue cedo, senão)

mas ela não se abriu, continuou fechada, o trinco não rodou e não entrou em minha casa nenhuma rapariga de cabelos castanhos como os teus, de olhos verdes como os teus, de mãos de fada como as tuas, não entrou, por isso debrucei-me outra vez nas palavras cruzadas,

(mas que raio Mariana, onde é que tu te foste meter às dez da noite)

na esperança de me acalmar, e a cada segundo, Mariana, a cada segundo que passava mais eu pensava

(onde estás Mariana, onde estás)

e mais eu andava à roda,

porque só consigo pensar decentemente se andar à roda,

a pensar

(onde é que tu te meteste às dez da noite Mariana, quando voltares)

na cozinha, agora, na gaveta de cima do armário da cozinha, na gaveta das facas, é onde a minha mão se encontra e procura a mais afiada que conseguir apanhar

(eu não queria Mariana, porque é que me obrigas a isto)

ponho-a debaixo da minha almofada e vou dormir.


Quando acordo, ela aínda não chegou.

Quando tomo o pequeno-almoço, ela aínda não chegou.


-Vá directo ao essencial, Tiago, vá directo ao essencial

-Espere só um minuto, estou aqui a tentar explicar-me, espere só um minuto


Quando tomo banho, ela aínda não chegou.

Quando me visto ela aínda não chegou.

Guardo a faca no bolso, e ela aínda não chegou.


E nisto o trinco da porta roda, já não está fechada, abre-se lentamente e eu escondo-me


-Porque é que se escondeu, Tiago, porque é que

-Espere, não me interrompa que eu não o interrompo


de faca na mão, ansiando por ela, que ela chegasse ao pé de mim, mas tente compreender, eu não a queria magoar, juro que não queria, a faca caíu e aterrou, foi coincidência, na garganta dela, cortou-lhe a garganta e foi isso, não fiz de propósito


-As provas dizem que o senhor a esfaqueou trinta e sete vezes antes de a violar


sim, mas é mentira, eu não fiz nada disso, juro que nunca fiz nada disso


-As provas dizem que o senhor a esfaqueou trinta e sete vezes antes de a violar


pois, então a faca deve ter caído mais uma ou duas vezes, mas não foi de propósito, isso não, isso nunca, eu nunca, acredite em mim senhor juíz, eu nunca.


Mas eles não acreditaram em mim, não percebo porquê, até era uma mentira convincente, não era, até parecia real, não parecia, quer dizer, estás a rir-te do quê, tu fizeste o quê, meu Deus, isso é horrível, não sei como consegues, a sério que não sei como consegues viver com isso tudo.


Nem ele fez nada, nem eu era criminoso.Errei: perdoem-me.

2 comentários:

  1. Gostei muito de ler este texto que, disseste, escreveste pensando no meu trabalho.
    De facto, a maior parte das vezes, as pessoas só apercebem dos seus erros quando é tarde demais. E só aí ponderam as consequências dos seus actos.
    É uma perspectiva muito interessante deste trabalho em que, no final de contas, lidamos com homens e mulheres humanos :)
    Agora já te adicionei e podes crer que continuarei a seguir este blog com muito interesse!

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  2. Foi das minhas preferidas até agora, johnny boy :P

    Gosto-te

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