A vida traduz-se em letras

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Crónica escrita para o meu amigo Miguel


-Vou ter saudades tuas, Miguel, - disse-lhe eu - vou ter saudades tuas.

Sim, Miguel, deixaste para trás todos estes 20 anos de amizade, não sei bem como.
Lembro-me de ambos de termos apenas seis ou sete anos, e de não percebermos o perigo de brincarmos com facas de cozinha.

- Larguem isso imediatamente! - gritava a tua mãe - Não sabem que se podem magoar a sério com isso?!

E nós questinávamo-nos, como haveríamos de brincar aos bandidos, sem as facas da cozinha. Depressa inventávamos outra brincadeira, e esquecíamos o assunto.

Depois, quando fomos para o sétimo ano, fomos ambos para a Escola Secundária Eça de Queirós, e ficámos na mesma turma. Ficávamos na mesma sala (escolhíamos sempre as mesma disciplinas, através de um ou outro telefonema cúmplice), com os mesmos castigos, com as mesmas faltas de trabalho de casa.
E os professores desconfiavam, Miguel, que nos ajudássemos um ao outro (e desconfiavam com razão), durante testes e trabalhos de casa (Matemática nunca foi o meu forte, Português nunca foi o teu), e nós, Miguel, dizíamos que não, que nos esforçávamos e que fazíamos tudo sozinhos.

Entretanto, acabámos o nono ano, e eu que queria seguir Literatura Portuguesa, fui para o Lyceu Camões, enquanto tu ficaste na Eça de Queirós, com o resto da turma que queria seguir Informática.

E tudo o que te disse para me despedir foi um simples

-Vou ter saudades tuas, Miguel, vou ter saudades tuas.

E tu, nada.

-Vou ter saudades tuas, Miguel, vou ter saudades tuas.

(Pode ser que ele não me tenha percebido à primeira.)

E tu, nada.

-Vou ter saudades tuas, Miguel, vou ter saudades tuas.

E as lágrimas já começavam a correr.

Mas tu, nada.

Acho que não me tinhas conseguido perdoar, por te estar a abandonar, a trocar-te por uma mísera disciplina, mas Miguel, é o meu sonho! Tenta compreender, por favor!

Um abraço, e estava tudo bem outra vez.

Estava tudo bem, é outra maneira de dizer que aínda nos falávamos, porque sinto falta, Miguel, de comentarmos sobre as raparigas bonitas da nossa turma

-Olha a Teresa, olha a Teresa!,

de gozarmos com os nossos professores

-Sim, sim, claro que sim, professora...,

de me sentar ao teu lado durante as aulas e de planearmos o nosso futuro,

-Amanhã a gente vamos para minha casa e vamos atirar ovos pela janela aos carros que passarem na rua, está bem?

-Vamos a isso.

Sim, sinto falta disso tudo. Mas aínda assim,vamo-nos falando, não é Miguel?

E lembras-te de quando acabámos ambos o décimo segundo ano? Nessas férias que estivemos juntos em Espanha? Lembras-te das raparigas, dos lugares e das coisas que conhecemos? É que eu não me esqueci.

E depois, ontem, ligaste-me, para tomar um café em tua casa (que pertenceu à tua mãe, até ela morrer).

E se calhar é por te teres recordado destes bons tempos que passámos juntos, se calhar foi por te teres apercebido que não se repetiriam, que quando eu cheguei, estavas deitado. A dormir.

Mas não acordaste quando eu te chamei pela primeira vez, nem pela segunda, nem pela terceira. E foi aí que percebi que não ías acordar.

E tudo o que disse foi um simples

-Vou ter saudades tuas, Miguel, vou ter saudades tuas.

E tu, nada.

-Vou ter saudades tuas, Miguel, vou ter saudades tuas.

(Pode ser que ele não me tenha percebido à primeira.)

E tu, nada.

-Vou ter saudades tuas, Miguel, vou ter saudades tuas.

E as lágrimas começaram a correr.

Mas tu, nada.

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