A vida traduz-se em letras

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Que Casa É Esta Que Não Tem Sombras?

Hoje está tudo muito claro, apesar de chover lá fora, hoje a minha visão não se turva com pequenos mares nos meus olhos, nem com nódoas nas folhas de papel; hoje, neste dia que nem sei qual é, não me aborreço, não me entristeço nem penso na merda que é a minha vida, hoje vou ser feliz, vou abraçar a filha que nunca tive senão por intercessão de sonhos que o Espírito Santo seguramente me providenciará, cabelos loiros como é óbvio, e olhos azuis, um pequeno corpinho ainda por florescer de uma jovem com dez anos que os taxistas do Saldanha admiram com as mãos no bolso. Hoje vou pintar um sorriso um sorriso na minha cara se ele não surgir naturalmente, recuso-me a estragar mais folhas de papel por culpa destes rios que acham uma nascente na minha cara; sim, hoje vou mesmo ser feliz, hoje não há velas nem quartos completamente escuros, hoje acendo as luzes todas da minha casa, na esperança de ser atingido por um clarão fugaz não de luz mas de alegria, acendo mesmo as luzes, a sério, juro-lhe que as acendo todas, não me olhe dessa forma, dirijo-me ao interruptor e clique, uma casa toda ela nova onde a minha filha poderá brincar sem medo das consequências ainda que com uma timidez de boa educação presente a toda a hora, mas no fundo no fundo, quem irá ficar mais reprimido pela timidez serei eu, que desconhecerei os cantos desta nova casa que se revelou, ai, porque é que ligou o interruptor, não estrague o momento, estamos prestes a fazer amor e conto-lhe apenas os planos para o resto da semana, não se chateie, não se aborreça, olhe para mim a descobrir o seu pescoço com beijos, olhe para mim a achar a curvatura dos seus seios, olhe para mim a descer a sua barriga a fim de encontrar o Génesis, apague essa luz que me encontro assustado, esta casa não é minha, esta casa não é minha!, a minha casa é toda ela escura e não há sombras senão a sombra geral que a cobre toda, não, apague a luz se faz o favor, não se iluda que com a luz acesa esta casa não é minha e não sou eu quem está a tentar fazer amor consigo, deixe-se lá de brincadeiras e apague a luz que neste momento parece-me que tem uma idade semelhante à da minha filha, aí está a erecção, essa obstinação de miudinha de dez anos excita-me, pelo que parece, mas agora a sério, apague a luz e deixe-me fazer o meu trabalho, prometo que um dia destes serei feliz, menti-lhe, é verdade, não será hoje, apague a luz que eu tento amanhã, amanhã, prometo, irei dar abraços e beijinhos à minha filha de dez anos que não possuo, amanhã ligo-lhe logo pelo raiar da aurora que é tão bonita a visão daqui do Tejo e ligo também a luz, numa atitude de inovação, numa atitude de rebeldia obstinada de gotinhas de chuva que caiem sem a minha permissão, hoje não choro e amanhã também não, vou mudar, prometo, vou mudar e conseguirei, um dia, viver nesta casa com a luz acesa, agora não, apague a luz que estava prestes a penetrá-la, apague a luz e deixe-me continuar por estes caminhos que bem conheço, por estes corredores sem segredos, por esta sombra enorme que invade a casa inteira, apague a luz e deixe-me neste engano geral que é a minha felicidade, apague a luz e deixe-me viver, apague a luz, apague a luz, apague a luz e prometo que a levo a sítios que não imaginou que existiam sequer, apague a luz e prometo milhares de coisas como Eu ligo-lhe amanhã, escusa de se enganar porque amanhã não haverá telefonemas para ninguém, também cuido que não se deva preocupar muito com esse pormenor, ambos sabemos que necessitamos apenas de uma noite e não mais, não se atrapalhe, estou apenas a ser sincero, mas se quiser uma mentira também não há problema: Eu amo-a. Eu amo-a tanto, muito mesmo, quero casar-me consigo e ter uma filha canonizada, mas vamos apenas preocuparmo-nos com hoje à noite; apague a luz, imploro-lhe, que estou a ficar deprimido, é que, sabe, é mesmo horrível viver nesta casa há quinze anos e não lhe conhecer os cantos senão por sombras, basta-me a claridade do dia de hoje em que os meus olhos não turvaram a luz de lágrimas, por isso apague a luz, por favor, apague a luz e eu prometo-lhe que.

5 comentários:

  1. Olá, João!
    Nunca li nada de António Lobo Antunes. Antes de ler fosse o que fosse que ele tivesse escrito, tomei-o numa antipatia pessoal, irracional, que nunca me esforcei de inverter. Até que apareceu este último livro dele com um título que acho magnífico "Que cavalos são aqueles que fazem sombras no mar?". Curiosamente, um amigo meu ofereceu-me um exemplar do livro no dia em que fiz anos. Fiquei contente. O meu encantamento com o título não teria força suficiente para levar-me a comprar a obra. Peguei no livro, para o ler, sinceramente. Mas desisti logo nos primeiros parágrafos. E o livro ali está, na prateleira, ao lado dos livros da Agustina, que também comecei a ler... e larguei sempre muito precocemente.
    Foi o lado "antuniano" do título deste teu apontamento que me trouxe aqui a lê-lo. Ah, bom!... Encontrei nele palavras que quase caem com o jeito das torrentes de barro da tragédia de ontem na Madeira. Mas ainda assim são a expressão da intensidade da força viva da Natureza. Afinal, o título do apontamento foi mesmo escrito pelo "meu" João. Descansei e sorri.

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  2. Deverias mostrar o teu mal afamado poema aqui no blog muahah, há quem o queira ler xD

    E obrigado por pedires à professora para que eu lesse o meu texto na aula.

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  3. Nossa que lindoo ameii o seuu Textoo,.. *-*

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  4. João,

    Fico muito feliz por, de algum modo, te ter dado um estalo na cara.
    Vou-te contar uma coisa que contei ao Jordann há uns dias, mesmo antes da nossa estreia. A escola, o Camões tem uma vida própria...é estranho, mas conheço várias pessoas que concordam comigo. Eu, pessoalmente, já perdi a conta às chapadas que levei lá dentro, às coisas que aprendi, e às lições absolutamente inesquecíveis que ela não se cansa de nos dar.
    Por alguma razão o Vergílio Ferreira toda a vida falou daquela escola. A verdade é que o estigma, a marca do Camões vai-me acompanhar eternamente, e cada pessoa que lá conheci contribui para isso de uma forma ou de outra, desde o Feijó até ao ranhoso do Jordann. Não te preocupes, ele não fica ofendido, está habituado...
    E às vezes, o que se passa lá dentro e que eu não sei explicar cá fora, marca-nos tanto, ou mostra-nos de formas tão cruéis que somos muito menos do que aquilo que pensamos, que damos por nós numa fronteira muito estranha entre uma vontade de chorar incontrolável, e um sorriso gigante que parte do mais íntimo de nós, por sabermos que somos, ou melhor, estamos pessoas melhores.
    Gostava que as pessoas soubesses que a pessoa a quem me refiro com mais carinho no poema do centenário é o meu professor de latim que está agora com um cancro no cérebro. Ele foi com certeza a maior lição que a escola me deu.
    Depois de já saber do cancro, mas antes de ser operado, eu e o Guilherme estávamos a ir para uma aula de literatura, e ele encontrou-nos e perguntou o que estávamos a dar...nós estávamos a dar Antero de Quental. E ele olhou para nós e ‘’Aconteça o que acontecer, não acabem como ele.’’. Isto é um exemplo estúpido que ninguém poderá algum dia entender e nem sei porque raio to estou a contar, mas é importante. No fundo alegro-me de te dar a chapada que dei porque sei que um dia quando olhares para ela, provavelmente não é a minha imagem que vai aparecer, mas a imagem da Escola, e isso vale muito a pena.
    Obrigado pelos elogios.

    Um abraço,
    Simão Cortês

    P.S.- Algum dia leste José Tolentino Mendonça? Ele é padre, fez uma das recentes traduções da Bíblia, escreve poesia maravilhosamente e diz coisas apaixonantes sobre Deus. Dá uma espreitadela.

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  5. Há tanto tempo que não publicas um texto.

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