A vida traduz-se em letras

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Do Reprimir

O quarto estava escuro, como todos os quartos de uma história macabra como esta deveriam de estar. O homem chorava, amarrado pelas mãos ao tecto. O pés mal tocavam no chão. Implorava por perdão, que não aconteceria nunca mais. Não me importei. Empunhei o cutelo, e observei, divertido, a forma como as lágrimas fluíam com mais intensidade ao aproximar a lâmina do seu corpo. Afastei, aproximei, afastei, aproximei, uma incisão pequenina no abdómen, afastei, aproximei da cara, afastei. Ele chorava, e às lágrimas juntavam-se-lhe, agora, o sangue. Achei-me satisfeito. Óbvio que não era o suficiente, mas era satisfatório.
Arrastei uma cadeira e sentei-me mesmo de frente ao seu tronco, a um ou dois metros de distância. No outro dia, enquanto passeava, deparei-me com um velho num carro. Tinha os olhos fechados, e eu desconhecia se ele dormia ou não. Afastei-me. Não interessava, mas tinha sido um espectáculo fantástico. Como o gajo que se enforcou, há uma semana, na minha rua. Fogo, que espectacular! E recordava, satisfeito, até que fui acordado das minhas memórias por um soluço, proveniente da escumalha que se pendurava na minha frente.
-Satisfeito?, perguntei.
-Que mal fiz eu?, interrogou-me.
-Nasceste, falaste e exististe.
-Porque é que nunca me disseste que te incomodava? Escusava de ter forçado uma pseudo-amizade.
Ah!, com que então ele tinha forçado uma amizade comigo, hem?, está bem, está bem, então se ele força amizades, eu forço um cutelo a penetrar na carne do seu braço, a sentir no cabo a carne a ser cortada e o sangue a espirrar até atingir o osso.
-Porque tem mais piada assim.
O primeiro corte não me satisfez na totalidade. Fiz mais um, e mais outro, até que, por fim, aquele corpo vil e ensaguentado se deixou de mexer. Achava-se morto. Ou melhor, não achava, não achava nada porque estava morto. Ah, ah, ah. Deixei cair o cutelo, e sentei-me de novo. Fixei os seus olhos, que agora pareciam feitos de vidro. Melhor, muito melhor.
E assim me deixei ficar, por uma hora ou duas, a recordar velhos que não sabia se mortos ou não e enforcados na minha rua, com a diferença de me encontrar agora satisfeito.

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